Mileno observava o céu azul de maneira displicente; a chuva da noite anterior havia afastado as nuvens de fumaça vindas da cidade que ainda começavam a se acumular. Conseguia ouvir as irmãs mais novas bagunçando no campo perto de casa, bem como a mãe começando a preparar o jantar. A tarde era agradável, e tudo indicava que, mais uma vez, o dia terminaria tranqüilamente na Vila Zyega.
Também, pudera.
Aquela era uma vila quase que exclusivamente agrária. Grande parte dos vegetais e animais lá produzidos eram enviados para as grandes cidades... principalmente para a capital Elvengrado. O pai de Mileno, o senhor Folkor, tinha uma pequena e bem localizada mercearia, onde ele vendia tudo aquilo que cultivava, ou então trocava por outras coisas, das quais estivesse necessitando no meio doméstico. A troca não era a forma mais comum de comércio no mundo... não mesmo! Tinham uma moeda única aceita em quase todos os países, o Rufo, mas, em vilas pequenas como Zyega, a troca ainda era muito popular entre os cidadãos.
De certa forma aquela vida entediava um pouco Mileno. As mesmas pessoas. Os mesmos assuntos. Sempre. Todos os dias de sua vida. Às vezes tinha vontade de simplesmente pegar suas coisas e ir embora, como havia feito seu irmão mais velho, sete anos atrás. Mas, não tinha coragem de largar a família na atual situação: o pai estava velho e doente, e tinha esperanças de que Mileno pudesse tocar a mercearia da família, afinal, ele era sua última opção. O pensamento conservador e machista do senhor Folkor não conseguia conceber uma de suas três filhas mais novas cuidando da mercearia... muito menos Lauro, seu segundo e avoado filho, mais preocupado com sua “arte” do que com coisas reais e concretas. Mesmo acreditando que cuidar da mercearia seriam seus grilhões para o resto da vida, Mileno não se opunha à vontade do pai.
O rapaz só foi trazido dos seus pensamentos quando sentiu um leve, mas duro, chute em suas costelas; olhou para cima e enxergou o rosto pálido, sério e sardento de sua irmã, Andréa:
- Que espécie de idéia foi essa, Andréa?! – Mileno a encarou, irritado, enquanto se sentava na varanda de casa.
- Precisava chamar sua atenção de algum jeito! – e mostrou a língua – mamãe quer que você vá comigo buscar batatas para o jantar de hoje.
- Ah... tá bom... – e espreguiçou-se um pouco, levantando e seguindo para a horta na frente da irmã.
- Ahn... Milo... quando é que você vai dizer para o papai que não quer cuidar da mercearia? – a voz da menina soava cautelosa e preocupada – sabe que ele tem grandes esperanças sobre você, não?
- Eu sei... mas, adiantaria dizer que não quero e pronto? – e deu um riso forçado, com um tom de inconformação e deboche – Garret é quem estava certo. Foi embora sem olhar para trás. Acho que devia fazer o mesmo.
- Como se você tivesse coragem pra isso. – Andréa pareceu meio azeda – Além do mais, foi um desgosto tremendo para a mamãe quando o Garret sumiu de casa. Você é o único filho homem dessa casa agora.
- Isso é verdade. – Mileno suspirou – bom... ainda tem algum tempo até a situação piorar de vez. Até lá eu penso em alguma coisa.
- Sinceramente eu duvido da sua capacidade pra isso, mas... – e deu de ombros – mas sabe? Seria legal se você fosse viajar por aí... aí me levava junto e eu poderia ser uma grande engenheira um dia!
- Engenheira? Você? – Mileno riu, debochado – só porque arrumou alguns aquecedores no inverno acha que tem jeito pra ser engenheira?!
- Pelo menos sei fazer alguma coisa de útil pra essa família! – e mostrou a língua, divertida, enquanto passava na frente do irmão, correndo – quem chegar por último carrega a cesta de batatas sozinho até em casa!!!
- Ei! Assim não vale!! Você começou a correr antes!!!
- O mundo é dos espertos, meu irmão!!!
Então, depois de colher as batatas, lá ia Mileno carregando a cesta, enquanto a irmã andava displicentemente ao seu lado.
Quando estavam próximos de casa, ouviram um som que lembrava um tiro. Aliás, não só lembrava como era o som de um tiro. O casal de irmãos se entreolhou, apreensivos; tiros não eram comuns em Zyega, dada a calma e tranqüilidade da vila. Apressaram o passo de volta para casa, e quando estavam chegando puderam ver a senhora Folkor encaminhando a filha mais nova para dentro de casa, preocupada. Tão logo viu Mileno e Andréa, os chamou:
- Milo, Déia! Andem depressa para casa!!! É perigoso continuar aqui fora!!!
- O que aconteceu, mãe?!
- Anda logo menino!! – com isso, a senhora Folkor fez um gesto para que Andréa conduzisse a irmã mais nova, enquanto ela se encarregava de puxar o filho pelo braço.
Em poucos instantes estavam todos na cozinha da casa, com um pesado clima pairando sobre o ar. O pai de Milo havia ido até o sítio vizinho em busca de informações, e já voltara também. Salteadores estavam saqueando cada pequena loja que encontravam pelo caminho, e logo estariam na rua principal. A guarda da vila até que tentou detê-los, mas a calmaria os fez devagar demais para um combate, ainda que pela suas vidas, e agora estavam todos mortos. Por muito pouco o chefe da vila não conseguira avisar a cidade mais próxima do problema, embora não adiantasse muito. Até a ajuda chegar, provavelmente os salteadores já teriam saqueado tudo e partido:
- Mas que desgraça...!! Logo aqueles bandidos devem chegar até a mercearia... ah! O que será dessa família?! – o senhor Folkor estava preocupadíssimo com seus negócios
- Augusto Folkor!! – a mãe de Milo chegou mais perto do marido e lhe deu um tapa, como que para que ele recuperasse a razão – enquanto estivermos bem e vivos, a mercearia não vai ser uma preocupação. Apenas devemos continuar aqui e esperar isso terminar.
- Que... querida. – o senhor Folkor levou uma mão a face atingida pelo tapa – tem razão. Até porque Mileno está aqui para me ajudar, não é meu filho?! – e abraçou Mileno pelos ombros, que deu um sorriso sem graça; então, a senhora Folkor pareceu lembrar-se de algo, e sentou-se numa cadeira, levando uma das mãos à boca, horrorizada – Querida, o que foi? Monique?
- Amélia... Amélia foi até a mercearia esta tarde... – todos ficaram paralisados por um instante. Augusto engoliu seco
- Calma querida... está tudo bem. São ladrões. Se Amélia não fizer nada, vai ficar bem...
- Ficar bem?! Não Augusto! Não!! Ela não vai ficar bem!!! – Monique Folkor levantou-se e andou até a parede da porta, pegando um antigo trabuco que ficava exposto como uma relíquia; Augusto ficou na frente da porta
- Você não pode sair desse jeito, mulher! Vão te matar antes mesmo de você conseguir chegar lá!!
- Não posso deixar que machuquem a minha filha! – a senhora Folkor começou a chorar copiosamente. Mileno tirou a arma da mão da mãe e então a abraçou
- Mãe... pode deixar que eu trago Amélia de volta. Conheço um caminho mais rápido, e por onde provavelmente os ladrões não vão passar. Vai ficar tudo bem.
- Milo... – a senhora Folkor encarou o filho, preocupada com suas palavras. Mas, não havia nada que pudesse fazer. Sentiu que Milo lhe dava um beijo na fronte, e então saía porta afora
Assim, Mileno correu até a mercearia do pai, sempre evitando as ruas principais. Quando chegou, se deu conta de que não havia trazido a chave da porta, e que a mesma estava trancada pelo lado de dentro. Provavelmente, obra de Amélia. O rapaz já se preparava para derrubar a porta quando alguém passou na sua frente e abriu a porta:
- Déia! O que você tá fazendo aqui?! Volta já pra casa!!
- Grande herói você. – e entrou na mercearia; Milo a seguiu e fechou a porta após entrar.
- Amélia, cadê você? É a Déia e o Milo. Viemos buscar você.
- Deve estar lá em cima, no depósito. – então, subiram as escadas, e encontraram o choroso e pequeno semblante da irmã, que assim que os viu, saiu correndo, abraçando-os.
- Mano!! Mana!!!
- Tá tudo bem, Amélia. Vamos pra casa agora. – Andréa a abraçou, e já iam descendo as escadas quando Mileno interveio:
- Não! Eles estão aqui!! – ele observava, por uma pequena fresta da janela, os quatro homens que haviam posicionado-se em frente a mercearia...
Um comentário:
Hmmmmmm..... legal!!!!!
*ansiosa por mais*
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